Dia de parada gay em Brasília. A repórter chega na redação depois
de andar quilômetros. Obviamente, já passou informações e já tem matéria
no site. Eu estou acompanhando as ocorrências das polícias e dos
bombeiros. Telefonando para as centrais de comunicação e para os Centros
Integrados de Atendimento e Despacho das corporações, além de
acompanhar o whatsapp das forças e os sites de concorrentes. Hoje em
dia, muita coisa é repassada por whatsapp. Faço parte de uns quatro
grupos no meu celular pessoal e, no plantão noturno, também recebo
informações de leitores no celular do jornal, pelo mesmo aplicativo de
troca de mensagens.
Para um domingo com uma
manifestação das proporções da 18ª Parada Gay de Brasília, com um
público entre 15 mil e 60 mil, o trabalho estava bem tranquilo. Minha
colega batia a matéria aceleradamente para ir embora o
quanto antes. Ninguém quer ficar preso na redação no fim de um domingo, acredito.
Eu, por outro lado, não tive escolha. Só deixaria o jornal depois que
todas as páginas estivessem prontas. Ah! É importante entender o
contexto histórico da situação. A passeata foi eufórica e aconteceu dois
dias depois de a Suprema Corte americana legalizar o matrimônio entre
pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos. Se eu não estivesse de
plantão, certamente arrastaria a Paula e a Olívia (<3 <3) para
acompanhar. Aos 8 meses, nossa filhota não entenderia muita coisa, mas
eu desejo que ela cresça pensando que isso tudo é normal, diferente de
mim. Que ela possa ser ela mesma em um mundo em que isso seja seguro
para qualquer pessoa.
Foto da repórter Isa Stacciarine |
A aprovação da lei nos EUA é importante por acontecer
em um dos mais poderosos países do mundo. É uma conquista
fundamental para a comunidade LGBT internacional. Uma vitrine e tanto. E aconteceu em
uma nação cujo os radicais cristãos estão em franco crescimento. Em um
país que, mesmo que seja (e eu não tenho certeza disso) o mais avançado
do mundo, a população simplesmente não entende nada de ciências e uma
quantidade razoável de indivíduos acredita no desing inteligente
ou que a Terra tem 6000 anos e é o CENTRO DO SISTEMA SOLAR (PQP!!!).
Via de regra, não percebemos quando vivemos um momento histórico. O
melhor é aproveitar. É bom estar lá e ver. No Brasil, homossexuais podem
se casar, mas se trata de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), não há uma lei para ampará-los e isso pode mudar a qualquer
momento. Principalmente com os reptícios fundamentalistas evangélicos
da nossa Câmara, eleitos democraticamente. Os políticos com discurso de
ódio ganham cada vez mais espaço e o momento de lutar contra eles é
esse.
Por volta de 19h, as fotografias no Facebook
começavam a perder o colorido militante que pintou a rede social durante
o fim de semana. Me pediram para sair da redação e acompanhar um ato da
própria parada pela igualdade de direitos em frente à Câmara
Legislativa. Fui a pé. É pertinho. Confesso na minha mais preconceituosa
humildade que cobrir uma parada LGBT, mesmo que apenas um pequeno
trecho, é entrar em um mundo à parte. Um mundo, julgo eu, criado por
pessoas impedidas de viver com os mesmos direitos e liberdades que os
héteros. Quando cobrimos grandes eventos, sempre nos deparamos com a
incógnita dos números. Quantas pessoas participaram da passeata ou
daquele outro protesto? Os números variam muito. A Polícia Militar tende
a dizer que a participação foi maior se for um evento favorável ao
governo, e menor se for contra. Do mesmo modo, as organizações de
protestos e paradas inflam os números. No caso de ontem, 15 mil pessoas
participaram de acordo com os militares e 60 mil segundo os
coordenadores. Em quem acreditar? Soma tudo e divide por dois? Dá os
dois números?
Via de regra, se não é um número muito
discrepante, publicamos a quantidade anunciada pela Polícia Militar. E
eis que recebo uma mensagem de um leitor revoltado com a empresa em que
trabalho. "Jornalzinho de merda e de gays. Na parada aqui em Brasília
deu umas 3 mil pessoas e vocês colocaram 15 mil. Além de gays são
mentirosos iguais aos bandidos do PT." Quanto às supostas três mil
pessoas, estão bem representadas na foto do post. O que me espanta é a
forma de usar a palavra "gay". Ele a associa a "merda". E não só disse
que o jornal é muito ruim. É pior que isso. É de gays. Eu não sabia que
trabalhava em um jornal de gays. Nunca reparei. Sou um péssimo
observador, mas não achei que fosse tão ruim. E depois, além de gays,
somos mentirosos. Assim como os bandidos do PT. Oi? WTF?!
O
melhor de um debate em uma rede social é que a pessoa precisará esperar
você escrever sua opinião e terá que lê-la. Ou se passará por idiota.
Minha pupila dilatou como a de um gato que vê uma bola de papel
arremessada ao longe. Inclinei a parte da frente do corpo, levantei a
traseira (sem duplo sentido, por favor). Milhares de respostas
irôniocas, sarcásticas e destrutivas se passaram pela minha cabeça.
Mas... MAS... eu me contive. Era um celular oficial. Não era o Luiz
que estava respondendo. Era o jornal. Então, me limitei a dizer que
nossa apuração se baseou nos números da PM. Mas não podia deixar só por
isso, então fiz algumas perguntas também. "Estava na parada?" "Como sabe
que foi menos?" Eu tinha que, ao menos, provocar. Embora anunciássemos
os 15 mil participantes segundo a Polícia Militar, e sites concorrentes
também, o leitor insistiu em dizer que "são estatísticas de vocês (do
jornal)" e "ainda bem que cancelei essa assinatura". "Ou já teria dado
um ataque." Ui! Alguém segura esse hétero cisgênero defensor da família
tradicional aprisionado em Nárnia!
Ele
continuou e eu me segurei. "Eles são minoria e vocês colocam como
maioria." "Como vítimas e coitadinhos." "Mas não são." "Um jornal tem
que ser imparcial." E você, cidadão, quão parcial deve ser? Até que
ponto? A conversa só mudou de tom quando eu disse que, segundo os
organizadores, seriam 60 mil. "Aqui em Brasília, o movimento é menor que
em outras capitais. Não tem como." Respiro fundo. "Contenha-se,
Calcagno", repito para mim em pensamento. Muita gente pensa assim. Ao
entrevistar Jair Bolsonaro, Stephen Fry descreveu o momento como "um dos mais estranhos e sinistros encontros que já tive".
O parlamentar defende posturas indefensáveis e é dotado de uma lógica,
no mínimo, vergonhosa. Um tempo atrás tive uma prazerosa discussão com
um bolsonarista, por conta de uma manifestação política proferida por
uma blogueira lésbica. Eu discordei de ambos, mas ela não estava lá para
se defender e ele atacou o erro como se fosse cometido justamente por
se tratar de uma lésbica. Claro que, mesmo desconstruindo os argumentos
dele, não consegui fazê-lo mudar de ideia. Mas, ao menos, eu tentei.
Quando
entramos em uma discussão, temos que estar aptos a sermos convencidos. Ou, no mínimo, a ceder à derrota e à incompetência dos próprios argumentos
para torná-los mais fortes e claros depois. Vi minha mãe e, antes dela,
meu avô serem ridicularizados por parentes próximos, pessoas que
deveriam respeitá-los (principalmente ao meu avô), por defenderem
argumentos ditos de esquerda. As pessoas preferiam rir, ironizar, a
escutar o que eles tinham a dizer. Medo de quê? No excelente Easy Rider,
o personagem de Jack Nicholson alerta os motociclistas Wyatt e Billy
sobre a forma com que se portavam. A dupla não compreendia porque uma
pequena comunidade se sentia profundamente ofendida com a passagem deles
pelo local. Apenas de passagem, receberam olhares hostis e preferiram
seguir viagem o quanto antes. Vocês representam a liberdade, Nicholson
explica. E quando você vê a liberdade (puta que pariu, preste atenção,
isso é incrível!!!), e quando você vê a liberdade, as vezes percebe que
não está livre. Está amarrado pelos seus preconceitos, pela sua religião
(o texto não é literalmente assim). E quando alguém mostra para as
pessoas que elas não estão livres, essas pessoas são capazes de matar. SPOILER ALERT!!!1 E é isso que acontece.
atar para provar que estão.
Seria
essa a explicação? Por que ver um casal hétero se beijando não
significa muita coisa, mas ver um casal gay na mesma situação incomoda
tanto? Por que o casamento gay é uma questão tão polêmica? Por que a
homossexualidade causa tanto desconforto nas pessoas? Por que o ato de
"sair do armário" tem que ser tão duro? Por que é preciso existir
armários? Por que homossexuais recebem olhares hostis quando passam por
alguns locais? Por que morrem por conta de uma orientação sexual? Deixo
aqui o texto, assim como nossa história, por terminar. Sem conclusão e,
ainda por cima, cheio de dúvidas.