Quando eu era criança inventei uma
mentira para o meu pai. Mentira! Inventei muitas. Mas nessa em
específico, que não me lembro exatamente qual foi, meu velho me
respondeu com uma bela lição de vida, que ficou marcada. Embora eu tenha
demorado a internalizá-la, já que menti outras muitas vezes. Enfim...
eu provavelmente queria me safar de uma cagada, inventei uma mentira,
achei que ele não fosse descobrir e a estratégia pareceu funcionar. Por
uns instantes, pelo menos. Então ele me olhou, sem me punir diretamente,
sem derrubar minha mentira, sem destroçar meus argumentos, e disse
(imagine uma voz grave e sábia nesse ponto): "Se você mente, você mente
unicamente para você". Não foi assim tão poético, mas o sentido é esse.
Foi tranquilo e lancinante. Uma sacanagem. Todas as vezes que eu menti
depois disso, eu ouvi a voz do grilo repetindo as palavras do seu... Ops... Seu não. Ele odeia ser chamado de seu... Do Gabriel (sim, o nome do meu pai é Gabriel).
Quando
mentimos, mentimos para nós mesmos. Quando manipulamos, manipulamos a
nós mesmos. Em última instância, esse tipo de mal que praticamos, pode
até ferir ou prejudicar o próximo. Mas nós somos os primeiros e mais
ignóbeis enganados. Negamos a realidade que está diante das nossas
dilatadas narinas. Somos omissos à injustiça que nós mesmos cometemos, a
mais simples de impedir. Como, depois, teremos direito de julgar os
trapaceiros e mentirosos que vilipendiam a sociedade? Vou sustentar
minha argumentação com um conto. Não sei exatamente de onde ele veio,
então darei uma versão romanceada por mim, gênio máximo da literatura
mundial atrás apenas de Saramago e Gabo. Era uma vez um templo shaolin
(barulho de gongo!). Com esculturas de dragões, telhados côncavos e tudo
que temos direito. Nesse templo viviam um velho mestre e uma série de
jovens discípulos. Eram poucos para ocupar o local milenar amplo,
labiríntico e misterioso. Eles lutavam pela sobrevivência daquele estilo
de vida. Um dia, o mestre chamou os discípulos e disse que tinha uma
importante missão para eles.
- Vocês devem ir até à vila e roubar algo. Devem trazer o que roubaram para o templo.
- Mas... Mestre... Roubar é errado. - Disse um dos discípulos.
- Por isso vocês não podem ser vistos, ou mancharão o nome do Templo do Grilo Falante. Não podem ser vistos de forma alguma.
-
Senhor... Nós faremos o que você manda. Mas, já que está nos pedindo
algo que é contra a lei, pode nos explicar porque? - Questionou outro.
- Vocês entenderão.
Ao
saírem, o mestre os parou mais uma vez, e disse, com sua barba fina e
longa, seu rabo de cavalo e seus olhos cegos, e a voz mais misteriosa
que conseguiu: "Lembrem-se! Ninguém pode vê-los roubar!". E o bando
deixou as muralhas de tijolos enegrecidos imaginando se o sábio os
estaria testando as habilidades, se seria o início de uma revolução em
que o templo dominaria o vilarejo e depois, toda a China, e uma sorte de
outras possibilidades. Ao entardecer, todos voltaram contentes e
despejaram os pertences roubados. Nenhum deles era sádico ou cruel.
Então, todos os monges se preocuparam em pegar coisas pequenas, que não
fizessem muita diferença. Frutas, legumes, incensários de bambu, uma
pequena faca de limpar peixe, uma calça velha ainda molhada e chapéus.
Todos os monges, exceto um.
-
Porque você não trouxe nada? Porque não fez o que eu mandei? Eu sou o
seu mestre. Se não me der um bom motivo, pode deixar o templo ainda esta
noite!
Era
um discípulo jovem e magro, mas com o corpo definido, a cabeça raspada e
olhos pacíficos. Não alterou a voz ao falar. Não demonstrava medo ou
impetuosidade.
- O senhor disse que ninguém poderia nos ver roubar.
- E daí?
- Eu estava me vendo, senhor.
Então,
com a voz embargada, o mestre reconheceu no jovem o único discípulo que
passou no teste. Depois, todos voltaram juntos à vila, no sopé da
montanha, e com inúmeras reverências e pedidos de desculpas, devolveram
os pertences dos lavradores e criadores de porcos (se alguém souber a
verdadeira fonte da história, por favor, poste nos comentários). Do que
se trata tudo isso? De ser honesto consigo mesmo, em todos os âmbitos.
Reconhecer abertamente as nossas piores falhas. A mente é o nosso poço
secreto e mais profundo. Ninguém pode nos impedir de pensar, de
imaginar, de desejar secretamente. Algumas vezes, nem nós mesmos
podemos. Por isso é importante que sejamos tão francos e abertos. Não se
trata de ser puro, pois não somos puros. Somos bons e maus ao mesmo
tempo. Se trata de admitir-se, para então transformar-se em alguém
melhor segundo a própria natureza individual.
É
engraçado como somos acostumados a não fazer isso. Religiosos e
ditadores tentam, infundindo medo e ideias de pecado e crime, controlar
os nossos pensamentos. É um abuso baixo, vulgar, bem apresentado, por
exemplo, por George Orwell em 1984.
Na obra, Winston e outros personagens são obrigados a aceitar
pensamentos conflitantes divulgados pelo Grande Irmão. À grosso modo,
isso acontece no nosso caso quando defendemos a "família de bem", nos
colocamos a favor da vida, isto é, contra o aborto, e pedimos a pena de
morte. Impedimos que uma mulher sem condições para criar um filho
aborte, mas, posteriormente, quando, por força do meio e pela falta de
acesso à educação e outras políticas públicas, o indivíduo se torna um
ladrão, queremos que ele morra. Ou quando pedimos "direitos humanos para humanos direitos".
Ora, os direitos humanos existem para atender os que carecem do estado.
Mas, eu extrapolo. Também poderia significar o ato de anularmos a nós
mesmos para obedecer a uma ordem de alguém que consideramos superior.
Por exemplo, o pastor seguidor do memorável, inestimável e insistente
Jesus de Nazaré, preocupado com os anu... digo... com as almas alheias,
pede ao pagant... er... quer dizer... ao fiel, que não seja gay, ou que
não se masturbe. Se a pessoa é homossexual, não pode deixar de sê-lo. E
se masturbar, porra(!), que puta falta de sacanagem pedir para alguém
não se masturbar.
Mas
onde eu quero chegar com isso tudo? Em tempos de discursos totalitários
e políticos fascistas protegidos pelo verniz sufocante da religião, em
tempos de crise institucional grave, de falta de representatividade do
Estado e discursos políticos anacrônicos e ambivalentes, a honestidade
intelectual é um oásis. Ser sincero consigo, com o que se sabe, com a
verdadeira força e profundidade dos próprios argumentos é um prazeroso
exercício. Tanto para detectar engodos quanto para não repeti-los. Para
transformar as discussões, levar cada um dos mais próximos à luz do
raciocínio. Não. Não é fácil. Mais do que a prática simples, ela exige
que estejamos dispostos a mudar nossas ideias, caso os argumentos que
nos forem apresentados sejam mais fortes. Exige que conheçamos as falácias,
para não usá-las e nem se deixar convencer por elas, e o mais difícil,
talvez, reconhecer um argumento falso, porém além das nossas capacidades
de quebrá-lo, admitir isso para nós mesmos e, sem sucumbir, deixar o
debate e se preparar para o próximo.
Sim.
É preciso ouvir, ser paciente e humilde e entender que nós somos a
classe política. Eu e você, reles eleitores, somos a classe política
tanto quanto a galerinha "do bem" da bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia),
pois a política é feita com pessoas. O avanço é dever de todos. Mas para
avançar, precisamos reconhecer o
ponto em que estamos parados. Nem um passo a mais, nem um passo a menos.
Cada um disposto a se transformar em nome da sociedade faz a diferença,
afinal, 1 bilhão é feito com a soma de 1 bilhão de 1's. Não. Não é
fácil e não tem receita de bolo. Mas as coisas vão mudar, queiramos ou
não. Orientações sexuais à parte, podemos ser ativos ou passivos nessa
mudança. Pode escolher.
Quibado do Bule Voador |
Ótimo texto, Luís! que tragédia seria se a gente não pudesse mais se masturbar e virássemos todos "cidadãos de bem"!
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