"É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã
Porque se voce parar pra pensar, na verdade não há."
Renato Russo, Legião Urbana
Podemos
fechar os olhos, tapar os ouvidos, olhar para o outro lado ou cantar
bem alto. Não adianta. A morte, devassa de todos, sempre nos encontra.
As vezes, acena de longe, ao levar um velho amigo, a mulher ou homem
amado, um ente querido, e outras, baforeja em nossa nuca fazendo-nos
arrepiar, sob a sorte do acaso ou a força da imaginação. Indiferente,
invisível, insípida, ela não distingue a glória, a violência ou a
simplicidade do ato de partir. Partimos com um sorriso nos lábios, em
casa, no hospital, no meio da rua, nas estradas, inteiros ou aos
pedaços, banhados em fezes, tanto faz. Batizada por Ariano Suassuna de
Pintada, essa onça voluptuosa não conhece idades e nem motivos, justiça,
nada a não ser a própria função de chave, porta e passo para o vazio.
Limita nossa estadia na existência em uma fresta insignificante no
universo e nos infunde medo do que existe atrás da cortina,
provavelmente nada.
E
para piorar, na verdade ela está lá todos os dias, brilhando, segundo a
sensacional metáfora do psicanalista Irvin Yalom, como o sol. Ninguém,
ninguém mesmo, sabe ou soube quando partirá. O amanhã é incerto, não
pertence a ninguém. Quantos dias, semanas, meses, anos a mais nós temos?
No bingo das horas, todos estamos cegos e surdos aos números, a não ser
que olhemos para a luz desse sol, que ergue lápides como árveres e coze
mortalhas como relva. Por conta da versatilidade imprevisível e
cruelmente indiferente, da eficácia e do medo aterrador que ela provoca,
no entanto, a morte pode se transformar em uma incrível conselheira,
amiga de todas as horas e preciosa amante. Então, quantos segundos
conseguiríamos encará-la de frente antes de desviar os olhos?
Tendência pessoal, do palco, prefiro tentar encarar a cortina. A coxia é um abismo insondável
e inútil em termos práticos para o ser humano. O único minuto que temos
é o aqui e o agora, nesse pequeno palco do teatro galáctico, para
lembrar Carl Sagan.O espetáculo termina ali, na cortina da obscuridade.
Em jus à minha mediocridade amadora, lanço mão de poetas e filósofos
para ouvir os sussurros gélidos e desejosos da Pintada. Rilke escreveu,
em primeira pessoa, que somos "o intervalo entre duas notas que a muito
custo se afinam, pois a da morte quer ser mais alta". Basicamente, o que
ele lembra é que não olhamos com medo para o período que existiu antes
de nascermos. E seja como for, voltaremos para o mesmo lugar. Falando de
modo materialista, estávamos mortos antes de nascermos e estaremos
depois de partirmos. Adeus.
Vladimir
Nabokov também explorou as semelhanças da pré e da pós existência. "O
berço balança acima de um abismo, e o bom senso nos diz que a nossa
existência é nada mais do que uma efêmera fresta de luz entre duas
eternidades de escuridão. Apesar de as duas serem gêmeas idênticas, o
homem geralmente vê o abismo pré-natal com mais serenidade do que o
abismo a que se dirige." Me dá arrepios, mas de maravilhamento, de
extâse. Se você teme olhar para o abismo de depois, concentre-se no
abismo de antes. Respire fundo e viva a vida sabendo que, a todo
momento, deveríamos estar onde gostaríamos de morrer, fazendo o que
faríamos e morreríamos fazendo, com as pessoas que gostaríamos de
morrer ao lado, com o perdão que gostariamos de oferecer em vida, a
generosidade dos risos, dos conselhos, das posses, tudo!, pois não
teremos uma segunda chance, como todos aqueles condenados, lembrem-se, a cem anos de solidão. Sob a luz, as perspectivas da vida mudam.
melhor olhar para o sol, pois a vida é a doçura da frágil asa da
borboleta e, individualmente, não significa nada para o Universo.
Filósofo
grego do período helenístico, Epicuro também tinha uma curiosa visão
sobre o a morte. Qual a razão de temer algo, ele perguntava, que quando
estamos, não está, e quando está, não estamos? Tão simples que eu queria
ter pensado nisso sozinho. Quando a morte está, eu não estou, e quando
estou, então ela não está. Como temer a algo que nunca encontrarei
realmente? Me resta encará-la de frente enquanto vivo feliz, cada dia
como se fosse o último, longe do desespero das ações impensadas, tão
característico daqueles que se agarram a qualquer custo à vida que se
esvai como areia entre os dedos. A morte e sua oportuna falta de
pontualidade é uma amante dedicada, uma mãe que nos permite, se
quisermos, viver a vida até o fim, sorvê-la até a última gota, deixando
para trás, nada mais que uma fonte seca, uma construção em ruínas. Basta
que nos banhemos de sol.
"Provavelmente nada" declarou o ateu em contradição ao tudo que lhe vinha a mente no momento da escrita. Nesse caso, morte e vida, bailam suadas pelo abraço no salão.
ResponderExcluirSão dois totalitarismos. Esse tal de "tudo" e esse tal de "nada". Melhor mesmo é o pé na vida, o olho na morte e o coração nos sonhos.
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