"Essa bala é antiga." Assim começa
mais um dos dilacerantemente incríveis textos de Jorge Luis Borgers,
chamado In Memorian J.F.K. Ele se refere ao assassinato do presidente
norte-americano John Fitzgerald Kennedy
em Dallas, Texas, em 22 de novembro de 1963. Os Estados Unidos estavam
em polvorosa. O movimento da contracultura avançava a passos cada vez
mais largos, a luta pelos direitos civis dos negros também estava em um
dos seus ápices e havia, ainda, a Guerra Fria e a guerra contra o
comunismo simbolizada, à época, pelo Vietnam. À título de curiosidade,
capitalistas se mostraram tão incompetentes quanto comunistas no
conflito, como estranhas versões de um mesmo monstro. Um muro cruzava
Berlim e a Alemanha estava quebrada ao meio. A América Latina ordenhava o
sangue das incontáveis ditaduras... Mas, voltando às origens do texto,
"essa bala é antiga".
Segundo o poeta e contista, ensaísta e tradutor argentino,
a bala que matou J.F.K. também matou um presidente uruguaio em 1897 e,
antes, Lincoln - que aboliu a escravidão nos EUA. Do metal desse
projétil também forjou-se a lâmina usada por Bruto para assassinar
César. E a mão que empunhou a adaga também foi a mesma que disparou os
diversos tiros que mudaram a história de nações e do mundo. O membro
nasce do apêndice cruel dos "ciclos históricos", uma ferramenta do tempo
para esfregar na cara da pungente humanidade que ainda somos a escória
do passado que, no presente, melhor equipada, segue a passos trôpegos
pela escuridão. O tempo chafurda nossas narinas dilatadas na merda que
nós mesmos fizemos no passado e o pior é que não percebemos como o
cheiro podre se parece com as fezes que excretamos no presente.
Arremetidos
rumo ao futuro pela espiral da história, não percebemos o quão
semelhantes são os fatos, que parecem se repetir como as estações dos
anos, mais ou menos iguais, mas sempre particulares. Sem solstícios ou
equinócios bem marcados para evitar grandes e pequenas tragédias e
garantir as parcas colheitas, marchamos. Refletindo sobre isso me veio à
mente um vídeo sobre a evolução dos primatas até os do Homo sapiens.
Somos um galho de uma árvore que se desenvolveu por milhares de anos.
Temos um acenstral em comum, inclusive, com nossos primos um pouco mais
peludos (nem sempre),
os Chimpanzés.Se você caminhar pela história da evolução da espécie
humana, não encontrará um primeiro humano. Só uma mudança gradual de
ancestral para ancestral, começando por nossos pais e avôs, que pode ir
até uma figura incrivelmente diferente de um primata.
Assim,
penso, tem sido nossa história. Uma volta um pouco diferente da outra,
mas incrivelmente semelhante, a não ser que voltemos até as cruéis eras
em que caçadores e coletores matassem uns aos outros por um graveto
incandescente. Por isso, também, a lei do talião não se aplica mais
hoje. Por isso, parecemos tão diferentes daqueles povos que queimavam
cientistas e filósofos na fogueira e que dominaram perigosamente o
mundo, negando abertamente tudo que já tinha sido descoberto até então.
Opa! Não... pera... Isso está acontecendo aqui e agora! WTF!!!??
Essa
fogueira é antiga. Às portas da Guerra Fria, diante de grupos
terroristas islâmicos com força quase continental, em um país sob a
sombra do fascismo evangélico,
entre os monstros da cristofobia e da islamofobia, eu me lastimava, até
pouco tempo atrás, por não ter vivido nos dourados anos do movimento
hippie, do Vietnam, de Martin Luther King. Do rock de verdade
(Yeah!!!!). Lamentava por não ter participado, como meus pais, da luta
contra a ditadura no Brasil. De não ter entrado na clandestinidade e não
sofrer censura contra os meus arroubos poéticos. "Liberdade! Igualdade!
Fraternidade!", eu gritaria. E meu coração se entregaria às românticas
engrenagens das revoluções.
Eu
me lastimava por isso tudo. Mas, então, olhei para minha época. Vivemos
sob a ameaça de uma crise financeira mais grave, com promessas de um
inverno severo, em vias de uma catástrofe global sem ponto de retorno,
diante da instabilidade fronteiriça dos países europeus, com o congresso
brasileiro composto, basicamente, por traidores. Tudo tão fresco e tão
velho. E agora, me aflinjo pensando, com urgência, no que fazer na nossa
época tão turbulenta, onde chocam o ovo da serpente e deus ergue sua
mão tirânica sobre as nações. Qual será o meu papel nesse teatro do
absurdo? Quero respirar, quero escrever, quero criar. Quero gritar aos
quatro ventos uma ideia diferente. As cadeiras dos gênios e dos
movimentos de contracultura estão vagas. Precisamos nos tornar gigantes
para garantir que, após a severa tempestade, os arqueólogos encontrem
nossas pegadas. Meu coração bate. Faça alguma coisa! Faça alguma coisa!
Essa frequência é antiga.
In memorian JFK
(Jorge Luis Borges -Tradução de Marcelo Bueno de Paula)
Esta bala é antiga.
Em
1897 disparou-a contra o presidente do Uruguai um rapaz de Montevidéu,
Arredondo, que havia passado longo tempo sem ver ninguém para que o
soubessem sem cúmplices. Trinta anos antes, o mesmo projétil matou
Lincoln, por obra criminosa ou mágica de um ator a quem as palavras de
Shakespeare haviam convertido em Marco Bruto, assassino de César. Em
meados do século XVII, a vingança a usou para dar morte a Gustavo Adolfo
da Suécia em meio à pública hecatombe de uma batalha.
Antes,
a bala foi outras coisas, porque a transmigração pitagórica não é
somente própria dos homens. Foi o cordão de seda que no Oriente recebem
os vizires, foi a fuzilaria e as baionetas que destroçaram os defensores
do Álamo, foi a lâmina triangular que segou o pescoço de uma rainha,
foi os escuros cravos que atravessaram a carne do Redentor e o lenho da
Cruz, foi o veneno que o chefe cartaginês guardava em um anel de ferro,
foi a serena taça que num entardecer bebeu Sócrates.
Na
aurora do tempo foi a pedra que Caim lançou contra Abel, e será muitas
coisas que hoje nem sequer imaginamos e que poderão concluir com os
homens e com seu prodigioso e frágil destino.
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