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Todas as segundas, quartas e sextas um artigo quentinho com opiniões aleatórias, questionamentos socráticos e visões confusas de mundo!

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Sete cores de amor e um sopro de liberdade

Dia de parada gay em Brasília. A repórter chega na redação depois de andar quilômetros. Obviamente, já passou informações e já tem matéria no site. Eu estou acompanhando as ocorrências das polícias e dos bombeiros. Telefonando para as centrais de comunicação e para os Centros Integrados de Atendimento e Despacho das corporações, além de acompanhar o whatsapp das forças e os sites de concorrentes. Hoje em dia, muita coisa é repassada por whatsapp. Faço parte de uns quatro grupos no meu celular pessoal e, no plantão noturno, também recebo informações de leitores no celular do jornal, pelo mesmo aplicativo de troca de mensagens.

Para um domingo com uma manifestação das proporções da 18ª Parada Gay de Brasília, com um público entre 15 mil e 60 mil, o trabalho estava bem tranquilo. Minha colega batia a matéria aceleradamente para ir embora o quanto antes. Ninguém quer ficar preso na redação no fim de um domingo, acredito. Eu, por outro lado, não tive escolha. Só deixaria o jornal depois que todas as páginas estivessem prontas. Ah!  É importante entender o contexto histórico da situação. A passeata foi eufórica e aconteceu dois dias depois de a Suprema Corte americana legalizar o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos. Se eu não estivesse de plantão, certamente arrastaria a Paula e a Olívia (<3 <3) para acompanhar. Aos 8 meses, nossa filhota não entenderia muita coisa, mas eu desejo que ela cresça pensando que isso tudo é normal, diferente de mim. Que ela possa ser ela mesma em um mundo em que isso seja seguro para qualquer pessoa.

Foto da repórter Isa Stacciarine
A aprovação da lei nos EUA é importante por acontecer em um dos mais poderosos países do mundo. É uma conquista fundamental para a comunidade LGBT internacional. Uma vitrine e tanto. E aconteceu em uma nação cujo os radicais cristãos estão em franco crescimento. Em um país que, mesmo que seja (e eu não tenho certeza disso) o mais avançado do mundo, a população simplesmente não entende nada de ciências e uma quantidade razoável de indivíduos acredita no desing inteligente ou que a Terra tem 6000 anos e é o CENTRO DO SISTEMA SOLAR (PQP!!!). Via de regra, não percebemos quando vivemos um momento histórico. O melhor é aproveitar. É bom estar lá e ver. No Brasil, homossexuais podem se casar, mas se trata de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), não há uma lei para ampará-los e isso pode mudar a qualquer momento. Principalmente com os reptícios fundamentalistas evangélicos da nossa Câmara, eleitos democraticamente. Os políticos com discurso de ódio ganham cada vez mais espaço e o momento de lutar contra eles é esse.

Por volta de 19h, as fotografias no Facebook começavam a perder o colorido militante que pintou a rede social durante o fim de semana. Me pediram para sair da redação e acompanhar um ato da própria parada pela igualdade de direitos em frente à Câmara Legislativa. Fui a pé. É pertinho. Confesso na minha mais preconceituosa humildade que cobrir uma parada LGBT, mesmo que apenas um pequeno trecho, é entrar em um mundo à parte. Um mundo, julgo eu, criado por pessoas impedidas de viver com os mesmos direitos e liberdades que os héteros. Quando cobrimos grandes eventos, sempre nos deparamos com a incógnita dos números. Quantas pessoas participaram da passeata ou daquele outro protesto? Os números variam muito. A Polícia Militar tende a dizer que a participação foi maior se for um evento favorável ao governo, e menor se for contra. Do mesmo modo, as organizações de protestos e paradas inflam os números. No caso de ontem, 15 mil pessoas participaram de acordo com os militares e 60 mil segundo os coordenadores. Em quem acreditar? Soma tudo e divide por dois? Dá os dois números?

Via de regra, se não é um número muito discrepante, publicamos a quantidade anunciada pela Polícia Militar. E eis que recebo uma mensagem de um leitor revoltado com a empresa em que trabalho. "Jornalzinho de merda e de gays. Na parada aqui em Brasília deu umas 3 mil pessoas e vocês colocaram 15 mil. Além de gays são mentirosos iguais aos bandidos do PT." Quanto às supostas três mil pessoas, estão bem representadas na foto do post. O que me espanta é a forma de usar a palavra "gay". Ele a associa a "merda". E não só disse que o jornal é muito ruim. É pior que isso. É de gays. Eu não sabia que trabalhava em um jornal de gays. Nunca reparei. Sou um péssimo observador, mas não achei que fosse tão ruim. E depois, além de gays, somos mentirosos. Assim como os bandidos do PT. Oi? WTF?!

O melhor de um debate em uma rede social é que a pessoa precisará esperar você escrever sua opinião e terá que lê-la. Ou se passará por idiota. Minha pupila dilatou como a de um gato que vê uma bola de papel arremessada ao longe. Inclinei a parte da frente do corpo, levantei a traseira (sem duplo sentido, por favor). Milhares de respostas irôniocas, sarcásticas e destrutivas se passaram pela minha cabeça. Mas... MAS... eu me contive. Era um celular oficial. Não era o Luiz que estava respondendo. Era o jornal. Então, me limitei a dizer que nossa apuração se baseou nos números da PM. Mas não podia deixar só por isso, então fiz algumas perguntas também. "Estava na parada?" "Como sabe que foi menos?" Eu tinha que, ao menos, provocar. Embora anunciássemos os 15 mil participantes segundo a Polícia Militar, e sites concorrentes também, o leitor insistiu em dizer que "são estatísticas de vocês (do jornal)" e "ainda bem que cancelei essa assinatura". "Ou já teria dado um ataque." Ui! Alguém segura esse hétero cisgênero defensor da família tradicional aprisionado em Nárnia!

Ele continuou e eu me segurei. "Eles são minoria e vocês colocam como maioria." "Como vítimas e coitadinhos." "Mas não são." "Um jornal tem que ser imparcial." E você, cidadão, quão parcial deve ser? Até que ponto? A conversa só mudou de tom quando eu disse que, segundo os organizadores, seriam 60 mil. "Aqui em Brasília, o movimento é menor que em outras capitais. Não tem como." Respiro fundo. "Contenha-se, Calcagno", repito para mim em pensamento. Muita gente pensa assim. Ao entrevistar Jair Bolsonaro, Stephen Fry descreveu o momento como "um dos mais estranhos e sinistros encontros que já tive". O parlamentar defende posturas indefensáveis e é dotado de uma lógica, no mínimo, vergonhosa. Um tempo atrás tive uma prazerosa discussão com um bolsonarista, por conta de uma manifestação política proferida por uma blogueira lésbica. Eu discordei de ambos, mas ela não estava lá para se defender e ele atacou o erro como se fosse cometido justamente por se tratar de uma lésbica. Claro que, mesmo desconstruindo os argumentos dele, não consegui fazê-lo mudar de ideia. Mas, ao menos, eu tentei.

Quando entramos em uma discussão, temos que estar aptos a sermos convencidos. Ou, no mínimo, a ceder à derrota e à incompetência dos próprios argumentos para torná-los mais fortes e claros depois. Vi minha mãe e, antes dela, meu avô serem ridicularizados por parentes próximos, pessoas que deveriam respeitá-los (principalmente ao meu avô), por defenderem argumentos ditos de esquerda. As pessoas preferiam rir, ironizar, a escutar o que eles tinham a dizer. Medo de quê? No excelente Easy Rider, o personagem de Jack Nicholson alerta os motociclistas Wyatt e Billy sobre a forma com que se portavam. A dupla não compreendia porque uma pequena comunidade se sentia profundamente ofendida com a passagem deles pelo local. Apenas de passagem, receberam olhares hostis e preferiram seguir viagem o quanto antes. Vocês representam a liberdade, Nicholson explica. E quando você vê a liberdade (puta que pariu, preste atenção, isso é incrível!!!), e quando você vê a liberdade, as vezes percebe que não está livre. Está amarrado pelos seus preconceitos, pela sua religião (o texto não é literalmente assim). E quando alguém mostra para as pessoas que elas não estão livres, essas pessoas são capazes de matar. SPOILER ALERT!!!1 E é isso que acontece.
atar para provar que estão.

Seria essa a explicação? Por que ver um casal hétero se beijando não significa muita coisa, mas ver um casal gay na mesma situação incomoda tanto? Por que o casamento gay é uma questão tão polêmica? Por que a homossexualidade causa tanto desconforto nas pessoas? Por que o ato de "sair do armário" tem que ser tão duro? Por que é preciso existir armários? Por que homossexuais recebem olhares hostis quando passam por alguns locais? Por que morrem por conta de uma orientação sexual? Deixo aqui o texto, assim como nossa história, por terminar. Sem conclusão e, ainda por cima, cheio de dúvidas.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

A não obviedade do óbvio




 

Dizia Nelson Rodrigues que “somente os sábios enxergam o óbvio”. Mas, com todo respeito ao escritor, há coisas que são tão simples, que não precisa ser sábio para enxergá-las. Há muitas coisas do nosso cotidiano que deveriam ser óbvias, que nem precisariam de regras, leis ou avisos, mas que têm perdido seu sentido de obviedade.

A falta de bom senso tem tomado conta de nossas vidas. Tudo bem que não somos tão sábios para enxergar o óbvio sempre, como diz Nelson Rodrigues; ou que não existe verdade absoluta neste “mundo da caverna”, como diria Platão. Mas há atitudes dos seres humanos que estão hoje, muitas vezes, beirando o absurdo da falta de bom senso.

Na enciclopédia mais pesquisada no mundo atualmente – o Wikipédia – o conceito de bom senso está ligado à “capacidade intuitiva do ser humano de fazer a coisa certa”. E entendo essa “capacidade intuitiva” com um instinto básico do ser humano para as coisas mais simples e lógicas, pelo menos ao meu ver. Pensemos: em uma rua que é feita para veículos transitarem (carros, caminhões, motos etc.), é óbvio que não vamos andar no meio dela sem necessidade, correndo o perigo de ser atropelado. Reforço para entendimento: literalmente no meio. Bem, vamos para outro exemplo para melhor entendimento: é óbvio que não se passa por trás de um veículo quando ele está dando ré para sair de um estacionamento. Em ambos casos, independe de o motorista estar enxergando ou não; é uma questão básica de sobrevivência. Mas, por incrível que possa parecer, sim, há muitas pessoas que estão andando no meio das ruas e que passam atrás de um veículo quando estão dando a ré. E sim, essas pessoas estão vendo os veículos em movimento e muitas vezes em direção delas. E não, as pessoas não saem do caminho. Nessas horas me pergunto o porquê disso; pra quê? Seria uma forma de desafiar os motoristas? De mostrar uma certa superioridade por ser a parte frágil da situação por ser pedestre? Arrogância ou simplesmente desatenção? Enfim, independente do motivo que a pessoa tenha ao fazer isso, o que me vem a mente é a falta de instinto básico de sobrevivência e de bom senso.

Saindo das ruas, vamos para um lugar íntimo: o banheiro. Parece-me muito óbvio que se utilizamos o vaso sanitário, seja para o que e onde for, puxamos a descarga em seguida. E ainda, para os homens, quando aqueles respingos não caem dentro, mas ao redor do vaso, causando um verdadeiro terror para as mulheres, parece-me também óbvio pegar um pedaço de papel higiênico e limpar os respingos. Uma questão de saúde e higiene. De saúde, nem preciso comentar muito (espero), mas “gostar” de entrar em um banheiro com fedor de mijo acumulado não dá, né? Ou dá? Bom, cada um que faça sua reflexão... Há gosto para tudo...

E convenhamos, não precisaria ter uma placa avisando em um transporte público para que as pessoas deem lugar a idosos, grávidas ou pessoas portadoras de necessidades especiais. Nem precisaria de ter uma lugar reservado para isso. Parece-me muito natural, óbvio, ceder qualquer lugar a essas pessoas, ou qualquer outra que precise muito mais que nós por qualquer outro motivo. Falando em transporte público, sentar no chão com as pernas esticadas dentro de um vagão do trem, com este lotado, não me parece natural. Aliás, a pessoa está “pedindo” para ser pisoteada.

Não se estaciona na frente de uma entrada de garagem de uma casa, independente de ter carro dentro ou não; se uma rua indica que os carros devem ir para uma direção, não transitaremos com o nosso na direção contrária; devolver algo que encontrou que não lhe pertence; em um parque em que há caminhos indicados para caminhantes e “pedalantes” separadamente, o caminhante não andará no caminho dos “pedalantes”, e estes não andarão com seus veículos no dos primeiros; não jogar lixo no chão... Enfim... a lista das coisas óbvias é muito extensa, mas não pretendo entrar em detalhe de cada item. O fato é que estamos perdendo uma naturalidade de ser humano. Alguns dizem que estamos nos tornando animais por ter essas atitudes. Mas percebo que nem os animais estão com o instinto básico de sobrevivência tão parco assim... ou seja...

E antes que pensem que é óbvio que ele (eu) está falando que isso não se aplica a culturas distintas, que possuem normas do que é bom ou ruim para cada uma, digo que não é isso, mas algo que seja universal, uma forma de utilizar a inteligência para saber agir da maneira mais correta em uma situação, pelo bem de todos.  Inteligência não é cultural. É humano. Pode não parecer tão óbvio, mas, não custa nada tentar.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Dias de um futuro esquecido

Algum tempo atrás, eu conversava com o amigo-confidente Luiz Calcagno sobre uma teoria minha, meio maluca, a de que tenho a forte impressão que os últimos anos parecem ser uma continuação direta dos anos 80; como se boa parte dos anos 90 e 2000 tivessem sido apenas um sonho de estabilidade e desenvolvimento pacífico, mas que acabou abruptamente e nos vemos novamente às voltas com os antigos problemas. Depois de eu explicar pra ele, pode até ser que não tenha concordado, mas ao menos desistiu de me levar para o sanatório.

Tentarei então usar este espaço para construir essa minha teoria e aferir o grau de insanidade dela. O primeiro gatilho que me fez começar a ter tal “teoria” foi o noticiário internacional: a crise da Ucrânia meio que jogou a guerra fria de volta ao radar. Não há mais um hiato de duas semanas sem que uma declaração de Obama não tenha uma réplica dura de Putin e vice-versa. Lentamente toda uma geração, a que nasceu a partir de 92, começa a tomar contato com um medo que todos nós da geração de 80 para trás tinha bem vivida durante a infância e juventude: e se alguém apertar um certo botão vermelho (para os mais velhos não é preciso nem terminar a frase, pois certamente já estão imaginando um general disparando uma bomba atômica) e iniciar uma guerra nuclear?

Esse medo esteve presente fortemente por duas ou três décadas na humanidade, dos anos 60 aos 80, mas aí, no começo dos anos 90, a URSS se retirou do mapa, e os russos começaram discursos e tratados de aproximação. Todo mundo passou os anos 90 em festa. Vieram os 2000 e veio o medo dos terroristas, com o 11/9. Mas tudo bem, eles não eram um Estado, não era um povo contra outro, mas uma multidão de lunáticos que todo o mundo civilizado condenava. Não era o mundo civilizado lutando entre si.

Então veio a crise econômica de 2008. O mundo ficou menos estável, os recursos mais disputados, a Rússia quis continuar crescendo como vinham fazendo os países dos BRICS. O palco acabou sendo as ruas de Kiev e os atores a União Europeia e a Rússia. A Rússia agiu rápido, pegou um naco estratégico do território ucraniano - a Criméia - e a chapa esquentou. Desde então, um tema que havia ficado no comecinho dos anos 90 voltou à pauta: EUA e Ocidente contra o apetite russo; ou seja, Guerra Fria.


Nos anos 80 também havia um medo muito recorrente além da guerra atômica: a AIDS! Não foram poucas as personalidades de grande destaque ceifadas por esta inclemente síndrome: Renato Russo, Isaac AsimovCazuza, Freddie Mercury, Rock Hudson, Micahel FoucaultMagic Johnson  (sendo que apenas o último sobrevive até hoje à doença, porém teve a carreira abreviada pela doença) e mais uma pá de gente. Todos estes casos deram uma refreada na revolução sexual, iniciada nos anos 60, e que chegou aos anos 80 como uma charrete queperdeu o condutor. Hoje ainda não temos um grande astro como medo sanitário, mas temos fortes concorrentes: MERS, SARS, H1N1, Ebola. A revolução sexual, com todos os seus prós e contras, teve novo impulso com a evolução no tratamento da AIDS, que hoje não é mais sentença de morte. No princípio dos anos 90 fazer sexo começou a ter alguns empecilhos e foi sendo uma prática um pouco mais ponderada, hoje estamos voltando à liberdade dos princípios dos anos 80.

Acompanhando o clima de volta da guerra fria, os posicionamentos políticos parecem ter voltado também a uma polarização esquerda x direita, que parecia ter sido dissipada tanto pelo fracasso do socialismo quanto pela falência do capitalismo selvagem que contabiliza em quase simétrica escala números em contas bancárias e mortes violentas. A social democracia baseada em esquemas europeus tentou florescer. Mas, de novo, a crise econômica de 2008 parece ter emperrado a coisa. O que vemos, não só no Brasil nas últimas eleições (na verdade desde de junho 2013) mas no cenário norte-americano é um resgate de posturas drásticas e contundentes de pontos de vista extremados em: “todos devem ter tudo” e “cada um que trabalhe e consiga o que se quer”.

No fim dos anos 80, as preocupações com ecologia também pareciam mais fortes e urgentes. Foram ali plantadas as sementes da Eco92 e do Protocolo de Kyoto. Depois a coisa esfriou, muito se debateu e pouco se avançou. O clima, este que não volta atrás, está ficando cada dia pior e agora as preocupações com a ecologia parecem novamente mais palpáveis. Talvez a geração que cresceu com os conselhos do Capitão Planeta, agora conseguirá tomar a frente do processo e conseguir limitar as emissões de carbono tão eficazmente quanto o Protocolo de Kyoto reduziu as emissões de CFCs e freou a crescimento do buraco da camada de ozônio.

No Brasil também estamos vendo um hóspede indesejado dos anos 80, querendo pular o muro de volta para o nosso dia a dia: a inflação. Basta lembrar o quanto se gastava para encher o tanque do carro há dois ou três anos atrás ou pensar na conta do supermercado do Natal de 2012 e na do de 2014 para constatar que está valendo a pena fazer “compra do mês” para evitar os aumentos. A inflação ainda carrega uma avalanche de problemas sociais que estão pipocando nos jornais: desemprego, aumento da violência, diminuição da renda. Hoje me sinto muito mais privilegiado de ser funcionário público que um ano atrás, nos momentos de crise a estabilidade é tão valiosa quanto um bom travesseiro após um dia exaustivo de trabalho.

Fechando com o óbvio, que pode ser facilmente explicado pelo fato da geração de 30, 40 anos estar agora ascendendo no mercado e isso trazer seus referenciais para os produtos de consumo. Mas o fato é que temos nos cinemas Exterminador do Futuro, Jurassic Park, Independence Day, Transformers e mais uma pá de franquias diretamente dos anos 80 que estão florescendo como se nos 20 anos que ficaram esquecidas estivessem apenas guardando forças para erguerem-se mais fortes (o que não voltou, pode ter certeza, ainda vai voltar). Isso sem falar na febre de pixel art, óculos, tênis, claças, enfim na volta de toda a moda dos anos 80.


Ao meu ver, o que desencadeou essa volta ao cenário dos anos 80 foi justamente a crise econômica de 2008. Apontaria ali como o marco, como o momento do despertar dessa geração para o “ei, os recursos são limitados, se eu posso fazer as coisas como meus pais fizeram, porque vou fazer da melhor forma possível?”. Brincadeiras à parte, no fim de tudo sempre encarei os anos 80 como um período onde estávamos à beira do precipício. Parece que por 20 anos evitamos olhar para ele, e agora a realidade nos força a olhá-lo; não haverá mais tempo de olhar para o lado, ou construímos uma ponta para transpô-lo ou saltamos por ele e curtimos um emocionante queda livre com um final não muito feliz.

Talvez se este conselho tivesse sido seguido poderíamos ir adiante até o ano 2020....

segunda-feira, 22 de junho de 2015

A roda viva de Borges

"Essa bala é antiga." Assim começa mais um dos dilacerantemente incríveis textos de Jorge Luis Borgers, chamado In Memorian J.F.K. Ele se refere ao assassinato do presidente norte-americano John Fitzgerald Kennedy em Dallas, Texas, em 22 de novembro de 1963. Os Estados Unidos estavam em polvorosa. O movimento da contracultura avançava a passos cada vez mais largos, a luta pelos direitos civis dos negros também estava em um dos seus ápices e havia, ainda, a Guerra Fria e a guerra contra o comunismo simbolizada, à época, pelo Vietnam. À título de curiosidade, capitalistas se mostraram tão incompetentes quanto comunistas no conflito, como estranhas versões de um mesmo monstro. Um muro cruzava Berlim e a Alemanha estava quebrada ao meio. A América Latina ordenhava o sangue das incontáveis ditaduras... Mas, voltando às origens do texto, "essa bala é antiga".


Segundo o poeta e contista, ensaísta e tradutor argentino, a bala que matou J.F.K. também matou um presidente uruguaio em 1897 e, antes, Lincoln - que aboliu a escravidão nos EUA. Do metal desse projétil também forjou-se a lâmina usada por Bruto para assassinar César. E a mão que empunhou a adaga também foi a mesma que disparou os diversos tiros que mudaram a história de nações e do mundo. O membro nasce do apêndice cruel dos "ciclos históricos", uma ferramenta do tempo para esfregar na cara da pungente humanidade que ainda somos a escória do passado que, no presente, melhor equipada, segue a passos trôpegos pela escuridão. O tempo chafurda nossas narinas dilatadas na merda que nós mesmos fizemos no passado e o pior é que não percebemos como o cheiro podre se parece com as fezes que excretamos no presente.

Arremetidos rumo ao futuro pela espiral da história, não percebemos o quão semelhantes são os fatos, que parecem se repetir como as estações dos anos, mais ou menos iguais, mas sempre particulares. Sem solstícios ou equinócios bem marcados para evitar grandes e pequenas tragédias e garantir as parcas colheitas, marchamos. Refletindo sobre isso me veio à mente um vídeo sobre a evolução dos primatas até os do Homo sapiens. Somos um galho de uma árvore que se desenvolveu por milhares de anos. Temos um acenstral em comum, inclusive, com nossos primos um pouco mais peludos (nem sempre), os Chimpanzés.Se você caminhar pela história da evolução da espécie humana, não encontrará um primeiro humano. Só uma mudança gradual de ancestral para ancestral, começando por nossos pais e avôs, que pode ir até uma figura incrivelmente diferente de um primata.

Assim, penso, tem sido nossa história. Uma volta um pouco diferente da outra, mas incrivelmente semelhante, a não ser que voltemos até as cruéis eras em que caçadores e coletores matassem uns aos outros por um graveto incandescente. Por isso, também, a lei do talião não se aplica mais hoje. Por isso, parecemos tão diferentes daqueles povos que queimavam cientistas e filósofos na fogueira e que dominaram perigosamente o mundo, negando abertamente tudo que já tinha sido descoberto até então. Opa! Não... pera... Isso está acontecendo aqui e agora! WTF!!!??

Essa fogueira é antiga. Às portas da Guerra Fria, diante de grupos terroristas islâmicos com força quase continental, em um país sob a sombra do fascismo evangélico, entre os monstros da cristofobia e da islamofobia, eu me lastimava, até pouco tempo atrás, por não ter vivido nos dourados anos do movimento hippie, do Vietnam, de Martin Luther King. Do rock de verdade (Yeah!!!!). Lamentava por não ter participado, como meus pais, da luta contra a ditadura no Brasil. De não ter entrado na clandestinidade e não sofrer censura contra os meus arroubos poéticos. "Liberdade! Igualdade! Fraternidade!", eu gritaria. E meu coração se entregaria às românticas engrenagens das revoluções.

Eu me lastimava por isso tudo. Mas, então, olhei para minha época. Vivemos sob a ameaça de uma crise financeira mais grave, com promessas de um inverno severo, em vias de uma catástrofe global sem ponto de retorno, diante da instabilidade fronteiriça dos países europeus, com o congresso brasileiro composto, basicamente, por traidores. Tudo tão fresco e tão velho. E agora, me aflinjo pensando, com urgência, no que fazer na nossa época tão turbulenta, onde chocam o ovo da serpente e deus ergue sua mão tirânica sobre as nações. Qual será o meu papel nesse teatro do absurdo? Quero respirar, quero escrever, quero criar. Quero gritar aos quatro ventos uma ideia diferente. As cadeiras dos gênios e dos movimentos de contracultura estão vagas. Precisamos nos tornar gigantes para garantir que, após a severa tempestade, os arqueólogos encontrem nossas pegadas. Meu coração bate. Faça alguma coisa! Faça alguma coisa! Essa frequência é antiga.



In memorian JFK

Esta bala é antiga.
Em 1897 disparou-a contra o presidente do Uruguai um rapaz de Montevidéu, Arredondo, que havia passado longo tempo sem ver ninguém para que o soubessem sem cúmplices. Trinta anos antes, o mesmo projétil matou Lincoln, por obra criminosa ou mágica de um ator a quem as palavras de Shakespeare haviam convertido em Marco Bruto, assassino de César. Em meados do século XVII, a vingança a usou para dar morte a Gustavo Adolfo da Suécia em meio à pública hecatombe de uma batalha.
Antes, a bala foi outras coisas, porque a transmigração pitagórica não é somente própria dos homens. Foi o cordão de seda que no Oriente recebem os vizires, foi a fuzilaria e as baionetas que destroçaram os defensores do Álamo, foi a lâmina triangular que segou o pescoço de uma rainha, foi os escuros cravos que atravessaram a carne do Redentor e o lenho da Cruz, foi o veneno que o chefe cartaginês guardava em um anel de ferro, foi a serena taça que num entardecer bebeu Sócrates.
Na aurora do tempo foi a pedra que Caim lançou contra Abel, e será muitas coisas que hoje nem sequer imaginamos e que poderão concluir com os homens e com seu prodigioso e frágil destino.


sexta-feira, 19 de junho de 2015

É loucura se reinventar sempre?

É loucura se reinventar sempre, ser quem não é, ver no outro aquilo que nunca foi?
É loucura, viver na fantasia, buscar compensações, viver numa eterna ilusão?
Sim, é loucura!
Mas também não é loucura o amor?
Por isso, sejam felizes, e sim com fantasias! Porque, sem alegria e sem fantasia, fica apenas a realidade; este pesadelo criado pela falta de amor.


Não. Não sou poeta e nem tenho pretensões para. Simplesmente meses atrás havia copiado esse pequeno trecho do filme “Loucas para Casar”, falado por um padre num casamento no final (ops... spoiler alert), e “por acaso” dei de cara com esse texto novamente quando estava pensando que tema escreveria hoje.

Sem querer dar spoilers, o filme de comédia brasileiro acabou me surpreendendo pelo seu final em que... a personagem Malu... não, não vou contar... mas me levou a uma reflexão agora de como nós vivemos uma certa esquizofrenia social compactuada; algo que criamos, tanto em nós mesmos quanto nos outros, para conviver harmonicamente em sociedade ou com pessoas específicas, criando diversas máscaras ou “eus” ou personalidades de nós mesmos para agradar demasiadamente os outros, e destes, como uma expectativa de serem como queremos que sejam.

Tudo bem que cada ambiente merece um determinado tipo de comportamento. Eu mesmo gosto de respeitar os espaços assim como gosto que respeitem o meu. Adaptações fazem parte. Adaptações e não castrações. Deixar de lado seus gostos, seus desejos e seus sentimentos, para viver uma outra personalidade, parece-me um certo grau de loucura. Já é difícil viver uma personalidade só, a nossa, a que nos cabe viver, criar outras então, só nos causa mais problemas.

As nossas, são personalidades criadas para satisfazer familiares, para conquistar o/a amado/a, para fazer amigos ou para encher os olhos do/a chefe. Também há as que criamos em nome de uma cultura, uma religião ou um status social. O fato é que criamos cada vez mais máscaras, ilusões dentro de ilusões de nossas ilusões, e nos perdemos nelas. E ainda queremos e fazemos com que os outros usem as máscaras que nos satisfaçam.

Isso me lembra que o filósofo grego Platão, em um trecho de sua obra “A República”, narra uma alegoria - o mito da caverna - no qual simbolicamente mostra que nós vivemos um mundo de ilusões, acreditando como reais as sombras projetadas em uma parede no fundo de uma caverna (onde, alegoricamente, estaríamos) por seres ou objetos que passariam pela frente de fogueiras em algum outro ponto dentro e acima, e que a realidade e a verdadeira luz (a do Sol) estaria fora da caverna. Particularmente, gosto dessa alegoria, pois demonstra, entre outras coisas, essas ilusões que criamos e acreditamos serem verdadeiras.

Parece loucura essa alegoria? Sim, é loucura! Lembro que me senti um pouco estranho ao me identificar como aqueles que estão no fundo da caverna. Uma loucura que vivemos e criamos a todo instante, e que nos mantém de alguma forma.

Que somos imperfeitos? Sim, somos. Podemos ser melhores a cada dia? Sim, podemos. Somos diferentes? Sempre. Devemos sair da caverna? Parece-me uma boa ideia... Mas nada disso nos deveria deixar de viver nossas imperfeições e diferenças, e nossas sombras, até que conheçamos de fato o mundo além do escuro fundo da caverna.

O mundo sombrio do fundo da caverna em que vivemos é frio, competitivo, por vezes assustador. Como conseguir viver bem nesse mundo de sombras que nos deixa loucos? Sendo loucos, eu diria; mas loucos com amor.

Ah, o amor... outra loucura... o amor que vai muito além do carnal, mas é o amor puro, livre das paixões, que busca união de todas as formas. 

E digo loucura por que novamente cito Platão, que em outra de suas obras – O Banquete –, fala que o amor é um sentimento amplo e universal, que é busca de algo que nos falta e que, para sermos realmente plenos, precisaríamos da união e buscar o bem de todos. Assim, o chamado “amor platônico” seria essa capacidade de amar a todos, sem distinções de etnia, preferências sexuais, condições econômicas, culturais... enfim, sem distinção de sombras e ilusões. Isto sim me parece loucura. Mas que bela loucura para se viver dentro do mundo da caverna, não?

Então, na falta de amor e na falta do sol fora da caverna, é melhor reinventar-se sempre. Sem medos. Não há pecados nem punições; nem céu, nem inferno. Há vida e vidas! Que cada um busque viver a sua, feliz, com as fantasias que lhe caibam dentro da caverna, pois é nela que vamos permanecer por um bom tempo ainda; a caverna com sua realidade fria, sombria e sem amor.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Onde o DETRAN enfia o meu dinheiro?

Vinha evitando tocar em temas muito práticos e cotidianos, querendo deixar os temas menos acalorados e políticos, mas não teve jeito... Quase todos os dias, enquanto toco minha carroça para o trabalho o caótico trânsito de nossa capital (acredito que nada muito diferente de qualquer cidade média a grande do Brasil) me traz à tona tal assunto. Motoristas mal-educados, pedestres afoitos, ciclistas tentando competir com carros por um espaço no asfalto e nenhum destes atores convivendo harmonicamente, os números assustam: foram 408 mortes no trânsito em 2014, possivelmente mais gente do que a quantidade de seus amigos no Facebook!

Daí a gente tende a pensar: culpa dos motoristas mal-educados, das pessoas imprudentes, dos bêbados, etc. E sim, temos alguma razão, no trânsito as pessoas se mostram como são, trajando suas armaduras de lata e vidro sentem-se mais livres para expressar todo o egoísmo e a pouca empatia de que são dotados. Então é isso, né?! O problema morre aí e só teremos um trânsito mais harmônico quando cada membro da sociedade for mais empático e gentil, certo?! ERRADO.

Temos um órgão muito importante em cada um de nossos Estados que se chama DETRAN (Departamento de Trânsito), este mesmo que vez por outra nos envia uma simpática correspondência com um código de barras nos apontando que não fomos gentis e educados no trânsito. Ou seja, temos um órgão de governo, com bastante gente empregada, que arrecada dinheiro todas as vezes que nos flagram sendo maus motoristas. Como o bolso dói as pessoas vão se esforçar para ser bons motoristas, além disso esse dinheiro todo arrecadado, já que temos muitos maus motoristas vai ser usado para fazer um trânsito melhor, certo?! ERRADO.

A primeira parte até é parcialmente verdadeira, um cidadão prefere andar na linha que reservar uma boa parte de seu orçamento para continuar dirigindo. O problema é que quando ele recebe muitas multas, ou tem muito dinheiro isso deixa de ter tanta importância. Ainda sim é louvável como os radares de velocidade conseguiram diminuir em número de acidentes em nossas vias. O grande cisma vem a seguir: com o que é feito com a montanha de dinheiro que se arrecadam com as multas. O Código de Trânsito Brasileiro dispõe, em seu art. 320 que “A receita arrecadada com a cobrança das multas de trânsito será aplicada, exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito”. No entanto não dá para acreditar que muito dinheiro seja colocado nestas atividades, visto que todos eles parecem totalmente negligenciados aos olhos de qualquer motorista mais atento.

A engenharia de trânsito é uma piada, citando um exemplo do Distrito Federal: em Taguatinga temos um enorme cruzamento de uma pista rápida com duas mãos e suas respectivas marginais cortado por uma pista de duas mãos, em frente a um grande shopping da cidade, todos os dias à meia-noite os semáforos, que não possuem radares, ficam intermitentes e só voltam a funcionar às seis da manhã. Não preciso falar do perigo que é, né, ainda mais por ser uma região próxima a bares e boates, os acidentes graves são constantes. Já faz alguns anos e nunca mudou o esquema. A poucos quilômetros dali temos um cruzamento em uma rua erma, uma das vias do “cruzamento” é o estacionamento de um hospital psiquiátrico, pois bem aí temos um semáforo, com radar, que funciona 24h/7d! Legal, né?! Dá pra imaginar que existe alguém pensando no trânsito de nossa cidade??

Agora vamos à parte de educação no trânsito... Gostaria que levantasse a mão quem teve contato com alguma campanha decente de conscientização de trânsito no último ano. Uma campanha bacana, no trabalho, o filho que voltou da escolinha com uma cartilha do Detran, que tenha ouvido uma palestra com um palestrante bom... Não?! Imaginei... Nem para gastar uma pequena parte dos mais de R$ 150 milhões arrecadados em 2013 com uma mídia social decente, como faz a competente Prefeitura de Curitiba, sério, uma mídia social boa como a da Prefeitura ajuda demais ao órgão se aproximar de uma parcela significativa de cidadãos para dar seus recados.

No campo da fiscalização basta dizer que temos infinitos radares (pardais) nas vias, muitos que não funcionam e pouca coisa a mais. Por fim policiamento. Pergunto: alguém já foi bem orientado por um agente do Detran? Da minha experiência posso dizer que os soldados da PM do batalhão de trânsito dão um banho em qualquer “amarelinho” que parecem mais interessados em seus celulares e em possuir taseres do que orientar o tráfego...


Fecho aqui este singelo texto com a pergunta que vem a minha cabeça todos os dias quando estou no meu possante enfrentado nosso caótico trânsito: “Onde o DETRAN enfia o meu dinheiro?”

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Sob o olhar do observador

Quando eu era criança inventei uma mentira para o meu pai. Mentira! Inventei muitas. Mas nessa em específico, que não me lembro exatamente qual foi, meu velho me respondeu com uma bela lição de vida, que ficou marcada. Embora eu tenha demorado a internalizá-la, já que menti outras muitas vezes. Enfim... eu provavelmente queria me safar de uma cagada, inventei uma mentira, achei que ele não fosse descobrir e a estratégia pareceu funcionar. Por uns instantes, pelo menos. Então ele me olhou, sem me punir diretamente, sem derrubar minha mentira, sem destroçar meus argumentos, e disse (imagine uma voz grave e sábia nesse ponto): "Se você mente, você mente unicamente para você". Não foi assim tão poético, mas o sentido é esse. Foi tranquilo e lancinante. Uma sacanagem. Todas as vezes que eu menti depois disso, eu ouvi a voz do grilo repetindo as palavras do seu... Ops... Seu não. Ele odeia ser chamado de seu... Do Gabriel (sim, o nome do meu pai é Gabriel).

Quando mentimos, mentimos para nós mesmos. Quando manipulamos, manipulamos a nós mesmos. Em última instância, esse tipo de mal que praticamos, pode até ferir ou prejudicar o próximo. Mas nós somos os primeiros e mais ignóbeis enganados. Negamos a realidade que está diante das nossas dilatadas narinas. Somos omissos à injustiça que nós mesmos cometemos, a mais simples de impedir. Como, depois, teremos direito de julgar os trapaceiros e mentirosos que vilipendiam a sociedade? Vou sustentar minha argumentação com um conto. Não sei exatamente de onde ele veio, então darei uma versão romanceada por mim, gênio máximo da literatura mundial atrás apenas de Saramago e Gabo. Era uma vez um templo shaolin (barulho de gongo!). Com esculturas de dragões, telhados côncavos e tudo que temos direito. Nesse templo viviam um velho mestre e uma série de jovens discípulos. Eram poucos para ocupar o local milenar amplo, labiríntico e misterioso. Eles lutavam pela sobrevivência daquele estilo de vida. Um dia, o mestre chamou os discípulos e disse que tinha uma importante missão para eles.

- Vocês devem ir até à vila e roubar algo. Devem trazer o que roubaram para o templo.
 - Mas... Mestre... Roubar é errado. - Disse um dos discípulos.
 - Por isso vocês não podem ser vistos, ou mancharão o nome do Templo do Grilo Falante. Não podem ser vistos de forma alguma.
- Senhor... Nós faremos o que você manda. Mas, já que está nos pedindo algo que é contra a lei, pode nos explicar porque? - Questionou outro.
- Vocês entenderão.

Ao saírem, o mestre os parou mais uma vez, e disse, com sua barba fina e longa, seu rabo de cavalo e seus olhos cegos, e a voz mais misteriosa que conseguiu: "Lembrem-se! Ninguém pode vê-los roubar!". E o bando deixou as muralhas de tijolos enegrecidos imaginando se o sábio os estaria testando as habilidades, se seria o início de uma revolução em que o templo dominaria o vilarejo e depois, toda a China, e uma sorte de outras possibilidades. Ao entardecer, todos voltaram contentes e despejaram os pertences roubados. Nenhum deles era sádico ou cruel. Então, todos os monges se preocuparam em pegar coisas pequenas, que não fizessem muita diferença. Frutas, legumes, incensários de bambu, uma pequena faca de limpar peixe, uma calça velha ainda molhada e chapéus. Todos os monges, exceto um.

- Porque você não trouxe nada? Porque não fez o que eu mandei? Eu sou o seu mestre. Se não me der um bom motivo, pode deixar o templo ainda esta noite!
Era um discípulo jovem e magro, mas com o corpo definido, a cabeça raspada e olhos pacíficos. Não alterou a voz ao falar. Não demonstrava medo ou impetuosidade.
- O senhor disse que ninguém poderia nos ver roubar.
- E daí?
- Eu estava me vendo, senhor.

Então, com a voz embargada, o mestre reconheceu no jovem o único discípulo que passou no teste. Depois, todos voltaram juntos à vila, no sopé da montanha, e com inúmeras reverências e pedidos de desculpas, devolveram os pertences dos lavradores e criadores de porcos (se alguém souber a verdadeira fonte da história, por favor, poste nos comentários). Do que se trata tudo isso? De ser honesto consigo mesmo, em todos os âmbitos. Reconhecer abertamente as nossas piores falhas. A mente é o nosso poço secreto e mais profundo. Ninguém pode nos impedir de pensar, de imaginar, de desejar secretamente. Algumas vezes, nem nós mesmos podemos. Por isso é importante que sejamos tão francos e abertos. Não se trata de ser puro, pois não somos puros. Somos bons e maus ao mesmo tempo. Se trata de admitir-se, para então transformar-se em alguém melhor segundo a própria natureza individual.

É engraçado como somos acostumados a não fazer isso. Religiosos e ditadores tentam, infundindo medo e ideias de pecado e crime, controlar os nossos pensamentos. É um abuso baixo, vulgar, bem apresentado, por exemplo, por George Orwell em 1984. Na obra, Winston e outros personagens são obrigados a aceitar pensamentos conflitantes divulgados pelo Grande Irmão. À grosso modo, isso acontece no nosso caso quando defendemos a "família de bem", nos colocamos a favor da vida, isto é, contra o aborto, e pedimos a pena de morte. Impedimos que uma mulher sem condições para criar um filho aborte, mas, posteriormente, quando, por força do meio e pela falta de acesso à educação e outras políticas públicas, o indivíduo se torna um ladrão, queremos que ele morra. Ou quando pedimos "direitos humanos para humanos direitos". Ora, os direitos humanos existem para atender os que carecem do estado. Mas, eu extrapolo. Também poderia significar o ato de anularmos a nós mesmos para obedecer a uma ordem de alguém que consideramos superior. Por exemplo, o pastor seguidor do memorável, inestimável e insistente Jesus de Nazaré, preocupado com os anu... digo... com as almas alheias, pede ao pagant... er... quer dizer... ao fiel, que não seja gay, ou que não se masturbe. Se a pessoa é homossexual, não pode deixar de sê-lo. E se masturbar, porra(!), que puta falta de sacanagem pedir para alguém não se masturbar.

Mas onde eu quero chegar com isso tudo? Em tempos de discursos totalitários e políticos fascistas protegidos pelo verniz sufocante da religião, em tempos de crise institucional grave, de falta de representatividade do Estado e discursos políticos anacrônicos e ambivalentes, a honestidade intelectual é um oásis. Ser sincero consigo, com o que se sabe, com a verdadeira força e profundidade dos próprios argumentos é um prazeroso exercício. Tanto para detectar engodos quanto para não repeti-los. Para transformar as discussões, levar cada um dos mais próximos à luz do raciocínio. Não. Não é fácil. Mais do que a prática simples, ela exige que estejamos dispostos a mudar nossas ideias, caso os argumentos que nos forem apresentados sejam mais fortes. Exige que conheçamos as falácias, para não usá-las e nem se deixar convencer por elas, e o mais difícil, talvez, reconhecer um argumento falso, porém além das nossas capacidades de quebrá-lo, admitir isso para nós mesmos e, sem sucumbir, deixar o debate e se preparar para o próximo.

Sim. É preciso ouvir, ser paciente e humilde e entender que nós somos a classe política. Eu e você, reles eleitores, somos a classe política tanto quanto a galerinha "do bem" da bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia), pois a política é feita com pessoas. O avanço é dever de todos. Mas para avançar, precisamos reconhecer o ponto em que estamos parados. Nem um passo a mais, nem um passo a menos. Cada um disposto a se transformar em nome da sociedade faz a diferença, afinal, 1 bilhão é feito com a soma de 1 bilhão de 1's. Não. Não é fácil e não tem receita de bolo. Mas as coisas vão mudar, queiramos ou não. Orientações sexuais à parte, podemos ser ativos ou passivos nessa mudança. Pode escolher.

http://www.bulevoador.com.br/
Quibado do Bule Voador

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar com pedrinhas de brilhante...

Impossível andar pelas calçadas da maioria das cidades brasileiras e não notar algumas particularidades desagradáveis que um passeio matinal em terras brasilis podem nos regalar. Começando pelas irritantes fezes caninas espalhadas por muitas ruas de prédios residenciais, passamos por obstáculos que podem tornar um simples passeio em uma aventura hercúlea, seja para quem está com um carrinho de bebê, para um cadeirante ou para uma moça com um saltinho pouco mais alto. É possível notar ainda casas lindas com jardins maravilhosos atrás de muros frios e sem grandes preocupações estéticas. Esse panorama nos diz muito sobre como nos comportamos como sociedade.

Não cuidamos de nossas calçadas, não nos importamos em como elas aparentam ou funcionam. E quando, eventualmente, resolvemos ir até a padoca a pé e nos surpreendemos em como é feio e ruim andar por elas logo maldizemos o governo, culpamos a corrupção endêmica dos gestores púbicos e a conhecida leniência dos servidores públicos. O pequeno detalhe de tratar este problema assim é que minha avó pensou desta forma, assim como minha mãe e eu por boa parte do tempo, assim por uns 80 anos, aproximadamente, tentamos resolver o a questão das calçadas com estes lugares-comuns e as coisas até hoje não mudaram em absolutamente nada!

A primeira falha de jogarmos todos os problemas da nossa sociedade para o colo do governo é que isso não resolve nada. A segunda é que nem todos os problemas são realmente culpa do governo. Ainda que juridicamente as calçadas sejam de responsabilidade do poderpúblico, a discussão que quero abordar é como podemos construir uma cidade melhor e não se o paternalismo tem sustentação legal ou não. E a terceira é que ao fazermos isso perdemos a oportunidade de construir uma cidade que nos sintamos partícipes e responsáveis por ela.

Para que o Estado brasileiro tenha dinheiro para entregar serviços parecidos com os países desenvolvidos a arrecadação teria que ser maior que nosso PIB, isso ainda sem analisar as responsabilidade de particulares e de governo em cada país. Ou seja, é impossível que com o que arrecada nossos entes federais cuidem como gostaríamos de todas as nossas vias públicas, além de saúde, segurança e educação. Certa vez meu irmão recebeu u
m amigo americano em casa, quando o questionou sobre o que estava achando do Brasil ele disse que achou as casas muito bonitas por dentro, mas não entendia porque eram tão mal cuidadas do lado de fora. O que me levou a crer que, na perspicácia capitalista dos gringos, aquelas lindas vizinhanças americanas não são fruto do governo que vai lá e planta grama e constrói belas calçadas, mas dos proprietários que entendem que valorizar a calçada da própria casa é valorizar o imóvel. A pergunta que fica é: porque não cuidar da própria calçada?

A resposta que consigo enxergar para a pergunta anteposta infelizmente não é muito bonita: porque não é minha e não cuido do que não é meu. Já reparou como os interiores de condomínios fechados costuma ser tão bonito e bem cuidado? É que os moradores se sentem donos daquele pedaço, e só pode usufruir da beleza em que ele põe dinheiro os que também contribuem para tal. É o mesmo tipo de pensamento pouco civilizado que motiva o cidadão que desce de seu apartamento para que seu cão alivie as necessidades fisiológicas e, sem se importar com as fezes deixadas na calçada vira as costas e vai embora: não é problema meu, não vou pisar nisso, mais tarde do SLU vem e limpa. Novamente a responsabilidade é do governo.

Felizmente nem tudo são espinhos. Nos últimos anos, nas principais cidades brasileiras (posso falar mais de Brasília, que é onde moro), tem havido um movimento de ocupação dos espaços públicos com eventos como o Picnic e o pessoal dos “isoporzaços”. Encarar os espaços públicos como nossos é o primeiro passo para construirmos uma cidade a qual nos sintamos participes e responsáveis. O próximo passo agora é ajudar a construir esses espaços, seja com doações, com trabalho ou mesmo cuidando da acessibilidade e manutenção da calçada que passa em frente a sua casa.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Uma volta no parque de diversões


http://moonheadpress.blogspot.com.br/2013/11/the-deal.htmlA vida é uma brincadeira. Uma grande sacanagem. Nossa sociedade só tem valor porque acreditamos nisso. Criamos uma peça de teatro e passamos a pensar que ela é real. Nessa peça, uma grande tragicomédia, temos medo da cortina e lutamos por um lugar na coxia, mesmo que não saibamos, na verdade, o que existe lá. Como em uma ciranda, os personagens, nós mesmos, saltamos de um grupo para outro, invertendo e revertendo fatos e destinos. Uns saem de cena para muitos outros entrarem. E os máscarados caem pelas bordas do palco e imaginam que são platéia enquanto julgam, sem saber que participam, dos atos absurdos que se deesenvolvem. Parece-me, de onde enxergo, que o o poeta e revolucionário Ernst Toller elaborou o enredo do espetáculo. Ele disse que a humanidade é uma grande roda que "as vezes anda pra frente, ninguém sabe pra onde, e as vezes para trás, ninguém sabe porque".

Dinheiro, democracia, votos, religião, fronteiras, nada disso tem valor em si. Inventamos isso e transformamos em verdade absoluta para sustentar nossa imbecilidade. Nossa requentada e mal temperada existência, repleta de potenciais e tão abaixo da linha da mediocridade, sustentada por pilares de vento, é a impressão na areia daquilo que nós criamos e acreditamos. Temos pernas longas, mas damos passos de formiga. Coroamos tiranos e nos curvamos aos pés deles. Elegemos ditadores para que nos torturem. A custa de mortes, muitas, conseguimos depô-los, e somos heróis. Tudo isso em uma brincadeira de criança que se tornou longa, perigosa e enfadonha. Erguemos e demolimos castelos sem fim, sem perceber que tanto cenário, quanto roteiro estão sob nossos plenos poderes. Somos muitos, mais fortes, mas não segundo as regras da peça, regras que nós mesmos inventamos.

Seria bom, as vezes, só pra variar, subir em algum lugar alto, ver a cidade, o céu, e pensar no que é importante de verdade. O que vale a pena desenvolver e evoluir nas susseções de gerações. Quais sacrifícios ergueriam o homem, o mundo e a natureza além dos patamares subdesenvolvidos da nossa história. Vale a pena se prender à divindades passageiras, mesmo que elas durem dois ou três milhares de anos? Vale a pena deixar de buscar respostas para manter o status quo? Vale a pena tapar os ouvidos para conservar os próprios paradigmas, nunca mudar de idéia? Vale a pena se agarrar ferrenho ao mastro em um naufrágio e gritar que "o navio não está afundando"? Somos caçadores e coletores brincando de saber. Perigosamente, ao menos parte desse saber é verdadeiro o suficiente para interromper o espetáculo em uma única cena, antes do fim do ato, e deixar a peça inconclusa. Sentados com nossos traseiros bexiguentos em grandes almofadas, cobrimos nossas frieiras e assaduras em nome da comodidade da mesma dor. Ninguém tem coragem de dizer que o rei está nu.

O comediante Bill Hicks entendeu o problema. Ele dizia que o mundo é como o passeio em um parque de diversões. "E quando você opta por ir nele você acha que é real, porque as nossas mentes são poderosas assim. O passeio vai para cima e para baixo, ao redor e ao redor, tem emoções e calafrios, e é muito colorido, e é muito barulhento, e é divertido… por um tempo". Até nos pergunarmos, de repente, se é tudo real, ou estamos apenas passeando. Então, alguém nos diz para não nos preocuparmos, pois é apenas um passeio. "E nós? Matamos essas pessoas." É exagero? Socrates, Hipatia, Giordano Bruno, Martin Luther King, Olga Benária, Che Guevara, Mahatma Gandhi, apenas para citar aqueles que foram assassinados de modo literal. Ainda existem tantos outros, banidos, presos, silenciados ou anônimos que levaram consigo as chaves das portas do teatro-caverna, que levaram consigo a nossa liberdade.

Bill Hicks nos lembra que, apesar de tudo, ainda é só um passeio. "E nós podemos mudá-lo a qualquer momento que quisermos. É apenas uma escolha. Sem esforço, sem trabalho, sem emprego, sem economia de dinheiro. Apenas uma escolha simples, agora, entre o medo e o amor." O cientista e divulgador científico Carl Sagan, no Pálido Ponto Azul, lembra que tudo o que já passamos em nossa longa e sangrenta história, aconteceu em um ponto minúsculo e insignificante no Universo. Ele fala sobre a Terra, vista de longe, nosso lar, "um grão de poeira". "Nele, todos que você ama, todos que você conhece, todos de quem você já ouviu falar, todo ser humano que já existiu, viveram suas vidas. A totalidade de nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas, cada caçador e saqueador, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e plebeu, cada casal apaixonado, cada mãe e pai, cada crianças esperançosas, inventores e exploradores, cada educador, cada político corrupto, cada 'superstar', cada 'lider supremo', cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali, em um grão de poeira suspenso em um raio de sol."

Não é uma idéia pioneira, não é uma percepção original. Está bem debaixo de nossos narizes. O óvio, como eu sempre digo, é invisível aos olhos. Passeamos em um grande parque de diversões. Vivemos um teatro. Um grande espetáculo. Se existe um deus, deve ser Samuel Beckett. Pois, ao invés de simplesmente mudarmos as regras da brincadeira, esperamos Godot. E se resolvêssemos os nossos problemas e fôssemos explorar o espaço, nos debruçar minunciosamente sobre as questões fundamentais da vida? Utopia? Não me fale em utopia quando vivemos uma ilusão.

A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica.
Pense nas infindáveis crueldades infringidas pelos habitantes de um
canto desse pixel, nos quase imperceptíveis habitantes de um outro canto,
o quão frequentemente seus mal-entendidos, o quanto sua ânsia
por se matarem, e o quão fervorosamente eles se odeiam.
Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles
generais e imperadores, para que, em sua gloria e triunfo,
eles pudessem se tornar os mestres momentâneos de uma
fração de um ponto. Nossas atitudes, nossa imaginaria auto-importancia,
a ilusão de que temos uma posição privilegiada no Universo,
é desafiada por esse pálido ponto de luz.
Carl Sagan


"Aqui está o que podemos fazer para mudar o mundo, agora,
para um passeio melhor: pegue todo o dinheiro que gastamos em  armas
e defesas a cada ano e, e vamos gastar em alimentação e vestuário e educar os
 pobres do mundo, o que vale muitas vezes mais, não deixar nem um humano ser excluído,
e podemos explorar o espaço, juntos, o interno e externo, para sempre e em paz."
Bill Hicks

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Como escolher um quadro para sua sala de estar

Um dos temas que sempre gostei muito de me debruçar sobre foi a arte, mais especificamente a arte plástica. Talvez por ter começado a ler histórias em quadrinhos bastante novo logo me interessei por este mundo de formas, de cores, de anatomia, da representação de ideias e de movimento no papel. Admito, no entanto, que nunca fui um apaixonado que buscava visitar todas as exposições e conhecer todos os artistas e movimentos. Talvez por preguiça, talvez por falta de incentivo o fato é que hoje sou um curioso, adoro o tema, penso muito sobre ele, mas estou longe demais de ser um expert. E creio que por isso mesmo, talvez, estas minhas reflexões sejam importantes.

As duas opiniões que mais ouço quanto à arte são as seguintes: um grupo que defende a “arte pela arte” e outro grupo que defende que a arte deve ser uma “expressão da beleza”.

Do primeiro grupo, da “arte pela arte”, enxergo que é uma coisa muito mais bonita aos ouvidos do que uma coisa que faça real sentido. Toda coisa que é por ela própria não costuma ser de muita utilidade. O câncer nada mais é quando algumas células começam a ser as “células pelas células” e passam a se reproduzir sem levar em conta as necessidades do corpo, assim também os vírus e as bactérias não parecem ter muito mais interesse em se reproduzir por eles mesmos, e assim acabam inclusive matando o hospedeiro, que é o ambiente onde vivem. Verdade que o homem tem sido “homem pelo homem”, para verificar o resultado disso basta dar uma checada no relatório anual do IPCC... Enfim, uma coisa que não tenha um interesse maior que o de se perpetuar não me parece uma coisa digna de se manter por aí. Agora, no caso de “arte pela arte” significar apenas que a arte não deve se prender a amarras algumas, que é uma expressão que expressa algo para alguém, e se esse alguém gosta disso e quem produz essa arte gosta de fazer isso pois ela mexe com alguém que gosta dela e coisa e tal, isso acaba ficando confuso demais e poderia mesmo ser usado pelo Bial na abertura do próximo BBB.

Vamos então ao segundo grupo, o que proclama a arte como “expressão da beleza”. Bem, este caminho também pode ser igualmente poético, mas é tão complicado quanto o outro. Começo perguntando: o que é a beleza? A beleza é um conceito deveras subjetivo, eu por exemplo acho muito belos os dias chuvosos, aqueles cinzentos, acabrunhados, eles realmente me tocam e me fazem me sentir mais vivo, no entanto o jargão para estes dias é “dia feio”, e realmente conheço muita gente que acha que a vida fica mais feia nos dias assim. Mas então alguém virá e tirará o conceito de belo de Platão da cartola, e dirá: o belo é o que é útil. Certo, mas o que é útil também é igualmente subjetivo, uma muleta pode ser muito útil a uma pessoa com problemas na perna e um estorvo para alguém sadio. Esta mesma pessoa com problemas na perna pode já estar em uma cadeira de rodas, o que deixa a muleta novamente inútil, já a pessoa saudável pode necessitar de um apoio extra para alcançar algo e a muleta seria útil. Ou seja, algo útil é bastante subjetivo, dependendo sempre do contexto.

Parece-me que ambos os posicionamentos acabam por ficar deveras subjetivos. E ainda que seja inegável certo grau de subjetividade para apreciação de arte, quando as coisas ficam subjetivas por demais o caminho para o engodo e para os charlatões fica muito mais fácil. Pode-se afirmar, inclusive, que foi o excesso de subjetivação que nos trouxe algumas anedotas sobre expressões de arte contemporânea, como o caso da faxineira que jogou uma obra fora pensando que era lixo. A primeira coisa que penso é que, se eu gosto de algo vou ter que queimar alguns neurônios com aquilo.

O Nascimento de Vênus, Sandro Botticelli
Não tem jeito, se a culinária me apetece vou ter que entender basicamente sobre ingredientes, temperos e harmonização de sabores, ainda que eu nunca chegue a ser um chefe de cozinha e não saiba nem mesmo fritar um ovo. Apenas comer e dizer o quanto gostou do prato não é apreciar a culinária, é comer. Da mesma forma com a música, conhecer estilos, saber a história da música, do compositor, entender o que é o ritmo, a harmonia e a melodia, conhecer vários artistas dos gêneros que se interessa e outros é gostar de música. Colocar sempre o mesmo disco ou ouvir o que toca na rádio é apenas escutar um barulho que tape o incômodo silêncio. As expressões artísticas são as joias da coroa da civilização, achar que apreciar tais coisas não requer esforço algum, é o mesmo que esperar que seria se você voltasse 10.000 anos no tempo e regalasse uma feliz tribo de neandertais com O Nascimento de Vênus, de Botticelli, ou com a Persistência da Memória, de Salvador Dalí, eles alegremente a pendurariam na parede da caverna e os amigos iriam correndo para observar estas aclamadas obras. O ponto que, creio, muitas vezes escapa nas discussões sobre artes plásticas é que para ser possível apreciar e julgar as obras é necessário sim, estudo e conhecimento de causa, isto como lastro de escolha. Apenas depois deste crivo é que entra a parte da subjetividade, do “gosto” ou “não gosto”, mas aí então, a coisa já foi julgada e não se dirá: “Picasso é um lixo pois seus quadros são feios”; ou “Rafael não presta pois a arte nesta época era apenas representação do real e não expressava sentimentos”, o que se dirá será no sentido de “não me agradam os quadros de Picasso, ainda que tenha sido um excelente artista, que conseguiu descontruir formas e expressar com as formas com traços cheios de naturalidade” ou “Ainda que eu não goste de obras figurativas é inegável que as obras de Rafael são dotadas de acurada simetria, conhecimento anatômico e uma paleta de cores que é claramente pensada para arremeter às ideias por trás das cenas pintadas”.

Creio que devo ter escrito um tanto de bobagens! Especialmente para os que entendem de arte com mais profundidade. Espero ao menos poder ter trazido uma reflexão da forma como nos comportamos quando vamos julgar um quadro (e que vale, na verdade, para quando vamos julgar qualquer coisa na vida). Aqui me coloca um desafio para que possa me redimir, ainda que tardiamente, da minha demagogia: fazer um curso de introdução à história da arte ainda neste 2015.

Persistência da Memória, Salvador Dalí